“Deixei tudo para trás, pela minha vida”

Estas são palavras de uma Mulher de 29 anos, licenciada em Desenvolvimento e Educação de Infância (DEI), pela Universidade Eduardo Mondlane, e Docente N1 duma escola primária da cidade de Maputo, que diz ter sido vítima de violência doméstica perpetrada pelo seu esposo, por dois anos. A jovem, que prefere falar em anonimato vamos chamá-la de Sara, conta que sofria violência psicológica diariamente, e exactamente por ser licenciada o esposo a ofendia de tal forma que ela se sentisse sem dignidade. “ Ele batia-me, forçava-me a manter relações sexuais, e dizia que o facto de ser licenciada não significava nada. Qualquer mulher para ele era mais importante que eu, merecia mais respeito que eu”, desabafou.
“Me sentia obrigada a continuar na situação pelos meus filhos, porque não queria abrir mão da casa e de todos bens que adquiri com o meu esposo, e também pelo medo de recomeçar a vida sozinha, com duas crianças e o julgamento da sociedade. Mas depois abri os olhos, deixei tudo para trás, pela minha vida”, respondeu Sara quando questionada sobre razão de tolerar a violência por muito tempo.


Tal como Sara, várias mulheres de alto grau de instrução ou pertencentes a classe social média e alta em Moçambique são vítimas de violência doméstica perpetrada pelos seus parceiros.
Os casos mais mediatizados e que chocaram o país foram, primeiro, em 2016, a morte de Valentina Guebuza, a filha do ex-presidente moçambicano, Armando Guebuza, assassinada pelo seu marido, Zofimo Muiuane.  
O segundo caso é da Josina Machel, filha do primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel, que perdeu a visão de um olho resultante da agressão de que foi vítima por parte do namorado, Rofino Licuco.
De acordo com Ndzira de Deus, Directora do Fórum Mulher, organização da sociedade civil que luta pelos direitos humanos e pela melhoria da posição da mulher na sociedade, não era comum ouvir casos de violência doméstica sofrida por mulheres, seja com alto grau de instrução ou mulheres de classe social alta, muitas preferiam calar-se dado ao cargo ou estatura social em que ocupam, mas actualmente já conseguem aproximar-se aos gabinetes de atendimento a mulher e criança vítimas de violência doméstica para denunciar. Ela enfatiza que “é algo novo e temos que saudar, porque as mulheres pensavam que por ter um poderio económico elevado ou minimamente estabilizado não poderiam denunciar. Este era um mito que nós, como organização, sempre procuramos desconstruir”.


Numa análise antropológica, a Co-Editora de Antropologia da África Austral e Professora assistente do Departamento de Arqueologia e Antropologia da Universidade Eduardo Mondlane, Sandra Manuel, afirma que toda sociedade é violenta, não tem diferenças de classes, a violência manifesta-se de diferentes formas de acordo com cada classe mas o facto de pertencer a classe alta não significa estar isento de violência e os casos de Valentina Guebuza e Josina Machel provam isso.
A antropóloga fundamenta-se na sua pesquisa que aborda sobre relações íntimas de pessoas de classe média e grupos de elite, com foco nas pessoas nascidas a partir de 1975 em diante, e explica os motivos da existência da violência doméstica nessa classe, “o que acontece com essas mulheres é que, pelos pais dessa geração houve investimento numa educação de empoderamento da mulher mas estas famílias tinham filhas e filhos que eram educados de forma diferenciada. Para os homens, manteve-se uma educação que continuava a dar privilégio a masculinidade dominadora em que as mulheres são uma espécie de adereço dessa masculinidade.”
Entretanto, acrescenta Sandra Manuel, as filhas que no futuro seriam esposas desses homens do mesmo grupo criou-se a ideia de que as mulheres devem ser independentes, autónomas, com capacidade de autossuficiência e ao crescer elas tornam-se cidadãs do mundo e em termos do valor de vida em comum elas não tem expectativas de serem submissas, elas querem ser horizontais, pares, não querem ser mulheres por de trás do homem e sim ao lado e quando chega a altura de casar tem relações conflituosas por causa da expectativa um do outro.


Na interpretação da nossa interlocutora, o facto de as mulheres desejarem ser independentes e livres de decidir por suas próprias vidas, sobre quando querem ter filhos, querem liberdade de sair, curtir e  os homens, no caso seus esposos, não saberem lidar com isso, uma das formas de responder a insatisfação é a partir da violência que acaba chegando a situações extremas como os dois casos acima referidos. As mulheres desses grupos tem tido receio em denunciar porque há uma cultura muito forte que coloca os problemas familiares como assuntos privados, diz Sandra Manuel e defende que, “a lei contra a violência doméstica faz muito bem colocar a violência como um crime público entretanto em muitos momentos a legislação moçambicana parece não acompanhar a realidade, e isso em si não é um problema, torna-se problema quando não há um investimento de consciencialização dos direitos dos indivíduos sobre mudança social para que as pessoas tenham a liberdade de fazer queixa-crime dessa natureza”, concluiu.

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